domingo, 15 de setembro de 2013

O NASCENTE E O POENTE


 

Nasci no Porto Tibiriçá (atual Presidente Epitácio) e hoje estou vivendo em São Vicente, na região metropolitana de Santos. Já havia morado em São Vicente, entre 1974 e 1984; depois mudei para São Paulo em 1985. Voltei para Epitácio na década de 1990, onde fiquei até 1997. No ano seguinte fui morar em Campo Grande – MS, cidade que acolheu muitos epitacianos. Voltei para São Paulo em 1999 e retornei para São Vicente em 2001.

Sempre que faço esse pequeno e confuso relato as pessoas logo reagem, tentando compreender os motivos de tantas andanças e mudanças.

Outra coisa, o que tem a ver São Vicente, uma cidade fundada no século XVI, com o Porto Tibiriçá, fundado no início do século XX?

O que poderia ter em comum essas duas localidades tão distantes, uma no litoral e outra no interior, e com quatro séculos de diferença?

Tudo a ver.

Muita gente do interior vem para a Capital, para o litoral e também vai para o exterior. Outros tantos fazem o percurso contrário. Sou do Porto Tibiriçá e creio que tem muitos e tibiriçaenses e epitacianos em vários lugares do Brasil e do mundo. Tem muita gente da nossa terra vivendo no litoral, em São Paulo, em várias regiões do Brasil, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, em vários países da Europa e até do leste europeu. É possível que tenha morrido algum pirangueiro no Word Trade Center. No Japão também tem epitacianos, é claro!

Creio que as pessoas vão para os lugares por algum motivo muito mais forte do que aquele que simplesmente funciona como pretexto e impulso para as mudanças. Mudar de lugar é uma busca de algo que se perde dentro de nós mesmos e que, na verdade, não está exatamente nos lugares para os quais a gente quer ir. Pode ser que aconteça, de acharmos o que realmente procuramos ao mudarmos de endereço, mas não é o lugar em si que é o motivo verdadeiro da procura, nem a causa real do encontro. São as coisas que acontecem, em determinados lugares, em determinados momentos que fazem realmente com que se façam algumas escolhas e essas decisões provoquem algumas mudanças na forma de ver e encarar a vida. Essa é a verdadeira mudança, a qual podemos realmente chamar de destino. Nas terras por onde se passa, descobre-se, se constrói um chão e nele o relógio do tempo avança numa sucessão de fatos e circunstâncias. Ao mesmo tempo o contato com esse chão aciona uma bússola, que nos conduz pelas veredas das decisões e escolhas. Aí a gente muda.

Certa vez eu fiquei fascinado pelo mar. Acho que isso também aconteceu com a minha mãe. Foi ela que teve a ideia de mudarmos para o litoral. Era um tipo de angústia que ela sentia na alma durante décadas e só curou parcialmente quando fomos viver próximo ao mar. Herdei isso dela. Meu pai sentia a coisa de forma contrária: vivia com o pensamento voltado para o sertão, lugar onde acreditava ter vivido os melhores momentos de sua última existência e, no final dela, conseguiu realizar o sonho de morar novamente em Epitácio. Seu corpo está sepultado no Horto da Igualdade, embora seu Espírito certamente não esteja lá. Aliás, sabe-se que algumas pessoas que foram viver longe fazem questão de ter seus corpos enterrados em Epitácio, pessoas que estavam vivendo na América do Norte e nunca tiraram Tibiriçá e Epitácio da memória sentimental.


O céu do sertão é bem diferente do céu do litoral; são cores e ventos diversos e opostos. O poente e o nascente repercutem de forma diferente no psiquismo das pessoas e isso influencia nas escolhas importantes que elas fazem na vida. Dizem que nascemos assim, mentalmente inclinados para um ou para o outro lado, para o sertão ou para o mar.

Eu tinha 10 anos quando vi o mar pela primeira vez. Foi em 1972, quando fomos passar uma rápida temporada em Praia Grande. Naquela época a rodovia Castelo Branco, que liga a Capital e o interior, ainda era nova e nas proximidades de São Paulo, Osasco e Barueri não havia muito tráfego de carros.

Para descer a serra era necessário cruzar a grande metrópole e chegar até a longínqua Via Anchieta, localizada na então área industrial dos municípios do ABC. A rodovia dos Imigrantes era só um projeto. Naquele ano meu pai havia tirado a sorte na loteria federal ganhando 65 mil cruzeiros. O prêmio logo foi transformado em uma casa, na esquina das ruas Curitiba e Guanabara, que nunca chegamos a morar, pequenos empréstimos para amigos, pagamento de dívidas e uma Kombi zero quilômetro, na qual fizemos essa longa viagem de uns 700 quilômetros para Baixada Santista. Nessa viagem fomos acompanhados pela família do grande amigo Tião Silva, espirituoso e sempre bem humorado, como a maioria das pessoas do seu sangue. Nessa viagem inesquecível tudo, como sempre, era motivo de comentários satíricos e gargalhadas. Saímos de Presidente Epitácio ainda de madrugada e fomos até Ourinhos pela rodovia Raposo Tavares. Lembro mesmo dos postos de serviços da BR, na rodovia Castelo Branco; aos meus pequenos olhos aquilo tudo era muito grande e repleto de curiosidades. Saímos de madrugada e pouco depois do meio dia já estávamos deslizando pelas “curvas da estrada de Santos”. Antes disso tivemos que entrar em São Paulo, pois o acesso principal à rodovia Anchieta era pela Avenida do Estado sentido Ipiranga. A cena mais impressionante nesse trecho entre São Paulo e Santos era a enorme fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, com aquele prédio enorme de arquitetura alemã, com linhas retas, janelas amplas, revestimento de bom gosto, revelando a inteligência pragmática e tecnologia sempre avançada dos alemães. Até hoje me causa forte impressão ver aquelas enormes instalações com seus pátios gigantescos abarrotados e também a ruas do entorno repletas de carros.

Dali fomos entrando lentamente na sempre misteriosa Borda do Campo, com sua vegetação monótona envolta em neblina, passando pela represa Billings e percorrendo um longo trecho, na época quase deserto, até chegarmos ao ponto de declive que nos levaria ao litoral. Fomos descendo a Serra e meus olhos iam se projetando fixamente no horizonte em direção ao Oceano Atlântico e então, finalmente, pude ver o mar azul, não tão azul quanto tinha visto no cinema, porém uma imensidão a perder de vista. A diferença era que esse azul parecia ter o cheiro da maresia, aumentando ainda mais o meu fascínio pela paisagem deslumbrante do litoral. Meu pai dirigia bem devagar, talvez por cautela e também curiosidade, para aproveitar o espetáculo. Tinha visto algumas fotos dele e do meu avô, os dois em trajes de viajantes e depois de sunga numa praia de Santos, nos anos 40, provavelmente a do José Menino ou do Gonzaga.

Ainda hoje não consigo explicar direito o que eu sentia naquele instante. A ansiedade para chegar rapidamente, tão comuns nas crianças, em mim era um sentimento de quem buscava algo diferente naquela paisagem sempre deslumbrante. Aquela imagem do Atlântico penetrou na minha retina e tornou-se inesquecível, assim como, na memória olfativa, permaneceu o cheiro do mar.

Essa aparente viagem de férias era na verdade o nosso reencontro com antigas paisagens desconhecidas pela memória consciente daqueles instantes, porém familiares nas lembranças remotas do inconsciente de outros momentos que ficaram no passado. Naquela época nenhum de nós sabia o que significava déjà vu, porém essa era a sensação que tomava conta de mim, da minha mãe e talvez do Mia que, inexplicavelmente resolveu fazer essa viagem com a gente. Estávamos nos reencontrando com o litoral e também marcando o próximo encontro de um convívio mais longo, talvez definitivo, para os próximos cinquenta ou setenta anos.

Durante uma semana visitamos Praia Grande, Santos, Bertioga, Itanhaém e Guarujá. Era um tempo em que essas incursões eram mais demoradas, principalmente ao litoral Sul, pois o único acesso era pela velha Ponte Pênsil, cujas filas de ida e volta eram enormes nas temporadas de verão. A cada ponto turístico ou lugar comum por onde passávamos tínhamos a impressão nítida do “já vi” e “já estive aqui”. Visitamos também muitos amigos epitacianos que já moravam há anos na Baixada Santista, especialmente o Manuca (Manoel) e o Chiba (Claudio), ambos filhos da Dona Lindina e também mãe da Irene, esposa do Tião Silva, nossos convidados. O Manuca (casado com a espanhola Maruca) trabalhava no jornal A Tribuna, da família Santini, com quem a mãe havia trabalhado por muitos anos como colaboradora doméstica. O Chiba trabalhava em Cubatão, na Copebrás, e a Cleusa, sua esposa, era funcionária do INPS. Fomos muito bem acolhidos, nessa viagem e também quando mudamos para São Vicente, recebendo deles ajuda preciosa para nos instalarmos na cidade. A primeira casa em que moramos pertencia ao casal Nezinho e Janice, também filha da Dona Lindina.

Quando voltamos para Epitácio naquele verão de 1972 já não éramos mais os mesmos, pois algo diferente e muito grave havia acontecido com os nossos espíritos. A viagem, que foi feita apenas para diversão e lazer, tinha causado um desvio existencial em cada um de nós fazendo com que antigas dúvidas e anseios se multiplicassem em nossos mundos íntimos. Voltar para Epitácio naquele ano foi distanciar-se da sensação de experimentar algo muito diferente do que experimenta o turista deslumbrado com o desconhecido. Para nós, nada daquilo era desconhecido e logo, dois anos depois, estaríamos descendo novamente a Serra do Mar para apagar definitivamente os efeitos do déjà vu.


UMA VELHA CIDADE NOVA

A história das pequenas cidades do interior, quando relatadas de forma linear e cronológica, tende a ser monótona, como a própria vida que acontece nelas todos os dias. Raramente encontramos heróis ou personagens de destaque, exceto aqueles que saíram dali para brilhar em outros lugares.

Quando recorremos à memória do cotidiano, as coisas e os acontecimentos adquirem um ritmo diferente, mais vivo e autêntico. Até mesmo as pessoas mais simples e aparentemente insignificantes tornam-se personalidades importantes e aparecem como agentes sociais tão influentes quanto os que normalmente aparecem em destaque nos tradicionais livros de história. Nessa história do cotidiano e das mentalidades quase todos se tornam protagonistas e são mostrados como personagens essenciais dos acontecimentos geralmente lembrados nos ambientes mais populares e distantes das academias.

Esta não é uma dessas narrativas tradicionais de personalidades heroicas e fatos monumentais e sim de fragmentos e cenas esparsas, colhidas no dia a dia das pessoas que viveram esses momentos e que hoje compartilham espontaneamente as suas experiências do passado. Daí o motivo de termos escolhido o estilo memorial, que é o apelo direto a uma fonte primária, da chamada “testemunha ocular da História...”

Presidente Epitácio sempre teve fama de terra de “forasteiros”, de gente “aventureira”. Como diversas outras localidades do oeste paulista, tornou-se nas primeiras décadas o próprio cenário das aventuras e depois um lugar de passagem para quem iria aventurar-se no Mato Grosso ou no Paraná. Era tudo ou nada, terra de promissão e terra de ninguém.

Nesses anos a cidade já teve muitos apelidos e adjetivos que refletiam o estado de espírito de quem opinava sobre suas características.

Nos primeiros tempos quem estava insatisfeito com a cidade dizia que ele era uma “Cidade sem Deus”.

Em meados da década de 1980, quando Epitácio recebeu os funcionários da CESP e das empreiteiras das obras da Usina de Porto Primavera, essas famílias eram discriminadas como “barrageiros”, gente que, segundo o preconceito popular, não inspirava confiança porque não possuía vínculos culturais com a cidade. Muitos se foram em busca dos seus sonhos. Porém, muitos outros ficaram porque, para eles, Epitácio era exatamente o lugar que procuravam.

E tem sido assim, desde quando surgiram os primeiros migrantes na década de 1910. Muitos deles apenas passaram pela localidade, buscando algo que jamais iriam encontrar, pois, na verdade, estavam perdidos nos labirintos do mundo íntimo, sem rumo existencial, em busca de si mesmos. Porém, boa parte dessa gente ali ficou porque tinha destino certo, talvez um pouco incerto, mas sabiam que não corriam atrás de uma simples ilusão. Sonhavam alto e queriam fincar raízes. Por isso, a maior parte do povo de Epitácio não nasceu na cidade, mas nela se fixou para viver e concretizar seus sonhos de realização prosperidade.

Quando as pessoas procuram uma cidade para morar certamente estão procurando algo mais do que simplesmente sobreviver. Querem não somente a prosperidade material, mas também a realização espiritual. É essa ideia de buscar a felicidade que nos faz compreender porque tanta gente deixa seus lugares de origem para nunca mais voltar. Partem para lugares distantes ou próximos porque precisam realizar sonhos, fantasias, projetos, ambições, etc., que quase sempre se tornam, na visão deles, impossíveis onde estão suas primeiras raízes. Foi assim também que muitos epitacianos foram parar em lugares que a gente nem imagina, como nós, que certa vez partimos do crepúsculo alaranjado do sertão em busca do azul do mar.

Como muitos outros pirangueiros que hoje vivem fora, embora distante, guardo em minha memória uma boa parte da história do lugar onde nasci, vivi a infância e parte da adolescência. São lembranças de acontecimentos, de pessoas e costumes que revelam a importância das raízes, das referências que carregamos por todos os lugares e que perduram no tempo e no espaço.

Sou um epitaciano da terceira geração, descendentes de pioneiros e forasteiros, de uma época em que a cidade era apenas uma promessa. Hoje Epitácio já está entrando na quarta geração (o Porto Tibiriçá completou 100 anos em 2007) e muito breve não terá mais a presença física dos habitantes da primeira hora.

Comparando a história de Epitácio com a história de outras localidades entendemos de imediato que o tempo realmente é relativo, pois aquilo que nos parece velho e antigo, em outros lugares é novo e recente.

Epitácio é uma cidade velha para quem lê os relatos dos primeiros desbravadores, imaginando que o fundador do Porto Tibiriçá e, portanto, de Epitácio, viveu nos tempos remotos da colonização portuguesa. Muito pelo contrário, o Porto Tibiriçá e Presidente Epitácio foram fenômenos do pós- moderníssimo século XX, o século mais agitado, mais científico e tecnológico que já viveu a Humanidade.

Apesar do isolamento, dos perigos da selva, da precariedade de recursos, em 1907 o mundo já era bem pós-moderno. Paris era uma cidade de três milhões de habitantes, tinha galerias de compras mais sofisticadas que os shoppings atuais e já ditava a moda. Em Londres e Nova York já existiam metrô, jornais e revistas de grande circulação e exposições de arte e tecnologia.

Quando os trilhos da Estrada de Ferro Sorocabana chegaram a Epitácio, em 1922, em São Paulo estava sendo organizada a Semana de Arte Moderna, uma verdadeira revolução estética na arte e na comunicação. Em 1924, durante as agitações tenentistas, Juarez Távora, aliado de Isidoro Dias Lopes, tentou fazer do Porto Tibiriçá um marco da revolução mudando o nome do lugar para homenagear o irmão morto em combate.

Quando a cidade instalou sua Câmara Municipal e teve o seu primeiro prefeito, entre 1948 e 1949, o mundo estava em plena Guerra Fria e no auge da pesquisa nuclear. Nenhuma das ruas de Epitácio eram calçadas e não havia rede de esgoto sanitário quando, em 1963, os Beatles foram apresentados como a nova sensação pop no programa de TV de Ed Sullivan.

E finalmente, em 1969, quando, fazendeiros e posseiros do Campinal disputavam a bala um pedaço de terra que mais tarde seria inundado pelo lago artificial, os astronautas da Apolo 11 estavam desembarcando na Lua e pensando na conquista do Espaço Sideral.


 
 
 

Um comentário:

  1. Muito linda a sua narrativa, eu fiquei maravilhado com a sua lembrança, ao me colocar neste maravilhoso contesto.Bem lembrado e contado por você a quebra da egeomonia na cidade. Minha esposa Sonia realmente quebrou todos preconceitos até então na sociedade Epitacina da epoca. Foi muito dificil para mim encarar uma situação inusitada para mim. Negrão trabalhador e muito casar com uma das mulheres mais linda da cidade foi muito nó na garganta da burguesia preconceituosa. Mais tivemos mãos maravilhosas para nos guiar, Dona Esmeralda "DUDUCA" "ESTER", e a Vó Vera, meu cunhado Ortiz e minha cunhada Veronica. Eles foram fundamental para mim naquele momento para me dar a sustentação no meu casamento. E depois do ocorrido fui agraciado com o maior presente que Deus pode dar para um casal : Que foi o nascimento da minha filha Janaina. Agradeço em mémoria do meu sogro seu Carlos e a dona Margarida tudo que aprendi com os mesmos, pela ajuda na educação da minha filha e depois do meu filho Carlos Szucs Neto . Ja se passaram 42 anos e com muito orgulho eu posso dizer somos felizes pela familia que temos, estamos aposentados, ela como professora e eu como Oficial de Justiça pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Hoje estamos residindo no mais nobre Códomino da cidade onde temos uma bela casa conquistada com muito trabalho. Muito obrigado Dadau. Estamaremos sempreaqui para recebe-lo . Um grande abraço você é muito talentoso como escritor, com certeza vou estar ligado em você.

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